Em pauta

Ética e interesse público, as bases do jornalismo investigativo

Por Marcos Fabrício Lopes da Silva*

O chamado jornalismo investigativo teve marco emblemático no escândalo Watergate, na década de 1970. Os jornalistas Bob Woodward e Carl Bernstein, do jornal Washington Post, investigaram gravações ilícitas obtidas por aliados do presidente norte-americano Richard Nixon na sede do Partido Democrata, opositor do presidente. A sede dos democratas estava instalada no edifício Watergate, o que explica o nome dado ao affair. O jornal sofreu muitas pressões políticas e econômicas. Todavia, o diretor do órgão autorizou Woodward e Bernstein a prosseguirem com as reportagens. Entendeu ser necessário preservar a Primeira Emenda da Constituição – sobre liberdade de imprensa – e o futuro dos Estados Unidos. Desvendado o escândalo, Nixon renunciou ao mandato presidencial.

Desde o impeachment do presidente Fernando Collor, o jornalismo investigativo firmou-se no Brasil, amparado na ética da denúncia como valor editorial supremo. São inúmeras as autoridades e personalidades famosas incomodadas pelo trabalho da imprensa em nosso país. Frequentemente, acionam o Poder Judiciário para impedir a veiculação de notícias que entendem ofensivas às suas reputações. Não raras vezes, medidas judiciais cerceiam a liberdade de imprensa. Ao mesmo tempo, o controle social dos meios de comunicação vem sendo estudado como medida para cobrar um maior comprometimento ético por parte das organizações jornalísticas. Cabe salientar a conquista democrática de suma relevância expressa no artigo 220 da Constituição Federal que consagra o princípio da liberdade de expressão e veda o embaraço à plena liberdade de informação jornalística, coibindo toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística. Com base nesse preceito constitucional, o Supremo Tribunal Federal considerou a Lei de Imprensa (Lei nº 5.250, de 1967) incompatível com a atual Constituição, motivo pelo qual não deverá ser mais aplicada:

“Não há liberdade de imprensa pela metade ou sob as tenazes da censura prévia, pouco importando o Poder estatal de que ela provenha. Isso porque a liberdade de imprensa não é uma bolha normativa ou uma fórmula prescritiva oca. (…) A crítica jornalística em geral, pela sua relação de inerência com o interesse público, não é aprioristicamente suscetível de censura. Isso porque é da essência das atividades de imprensa operar como formadora de opinião pública, lócus do pensamento crítico e necessário contraponto à versão oficial das coisas, conforme decisão majoritária do Supremo Tribunal Federal na ADPF 130” (Supremo Tribunal Federal, Referendo na Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.451-DF, ministro Ayres Britto, DJe 01.07.2011).

Está claro: não pode haver censura. Para reparação de eventuais ofensas ilícitas à reputação das pessoas, a mesma Constituição estabelece, no artigo 5º: “(…) IV – é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato; V – é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem; (…) X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação; (…).”

Em suma, a Constituição de 1988 instituiu o Estado Democrático de Direito. Consagra inúmeras garantias individuais e coletivas, traduzidas em princípios dotados de eficácia normativa direta. Entre eles, os princípios da liberdade de expressão e da plena liberdade de informação jornalística. A respeito do tema, é audacioso o pensamento expresso por Thomas Jefferson, um dos “pais fundadores” e ex-presidente dos Estados Unidos: “Se eu tivesse que escolher entre um governo sem imprensa e uma imprensa sem governo, não hesitaria em escolher a última.” Nada merece menos crédito da opinião pública do que a informação unidirecional, censurada e controlada por órgãos oficiais estatais. No Brasil, temos uma longa tradição autoritária no controle de órgãos de comunicação. O DIP de Getúlio Vargas é um exemplo do uso da força governamental no controle e direcionamento da comunicação, a serviço da vontade de um só. A isso se dá o nome de tirania, que é a ação diametralmente oposta ao exercício democrático do poder, que pressupõe a aceitação das diferentes visões de um mesmo fato.

Porém, o protagonismo jornalístico preponderante se encontra mais alinhado aos ditames da indústria cultural do que aos preceitos da dialética do esclarecimento. Omite-se que o terreno no qual a imprensa conquista seu poder vem do domínio que os economicamente mais fortes exercem sobre a sociedade. O controle da ideologia pauta a ordem do discurso que irá direcionar hegemonicamente a política editorial dos jornais. A imprensa não mais está destinada a revelar o que a realidade esconde, mas a esconder os modos como os donos do poder oprimem a soberania popular.

A queda de credibilidade nos jornais se assenta na seguinte distorção grave: de “república do pensamento”, como destacava Machado de Assis, em O jornal e o livro (1859), os meios de comunicação, na prática, se fortaleceram muito mais como “o novo palácio da aristocracia”, conforme adverte Eugênio Bucci, em Sobre ética e imprensa (2000). A voz do fútil e o silenciamento do útil tomam conta do noticiário predominante, como bem alertam Criolo e Tom Zé, na música “Banca de Jornal” (2014): “Veja! Isto É – poca/lenha/no grande bate-boca/E ainda escrevo/uma Carta Capital/para os Caros Amigos/desta banca de jornal/A formiga carrega a Folha/do Estado de S. Paulo/ao Piauí/Enquanto isso/A Cigarra quer ser Vip/pra sair Contigo na capa/da Tititi/Caras/quem pra marcar.”

O conceito de interesse público, sem apelo sensacionalista e com sensatez ética, deve servir de base primordial para o ofício jornalístico. Pressupõe-se como público o que não é secreto e se opõe ao exercício do poder invisível. Segundo Kant: “Todas as ações relativas ao direito de outros homens cuja máxima não é suscetível de se tornar pública são injustas”. Nesse sentido, explica Bucci, em livro já citado: “O jornalismo como o conhecemos, isto é, o jornalismo como instituição da cidadania, e como as democracias procuram preservá-lo, é uma vitória da ética, que buscava o bem comum para todos, que almejava a emancipação que pretendia construir a cidadania, que acreditava na verdade e nas leis justas.” Para estar à altura do desenvolvimento plural e consistente do jogo democrático, só se faz jornalismo de verdade com liberdade de expressão qualificada pela responsabilidade argumentativa, pelo esmero investigativo e pela expressão da alteridade.

*Marcos Fabrício Lopes da Silva é jornalista, poeta, professor universitário e mestre em Estudos Literários. Artigo publicado no Observatório da Imprensa.

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