Imprensa e História

Os que vieram, retornaram. Os que ficaram, desapareceram

Por Luis Guilherme Pontes Tavares*

Volto ao tema que mantenho no foco há quase 20 anos: o acervo de impressos que examinei no Salão Ruy Barbosa da antiga Associação dos Empregados no Comércio da Bahia. Neste instante, não saberia informar qual o destino que o empresário Antônio Mazaferra deu às mais de 10 mil publicações – livros, periódicos, relatórios e folhetos – que ocupavam as muitas prateleiras das 12 estantes da citada coleção localizada no segundo andar do amplo prédio da Rua do Tira Chapéu, que ocupa fração volumosa do quarteirão entre a Rua Chile e a Rua da Ajuda. Para não enfadar quem já me ouviu falar a respeito, completarei a minha participação neste evento apresentando o novo livro de Dom Marcus de Noronha da Costa sobre a biblioteca que herdou do 8º Conde dos Arcos – Dom Marcos de Noronha e Brito (1775-1828), vice-rei do Brasil (1806-1808) e governador-geral da Província da Bahia (1810-1818).
Comecemos, pois, pelo acervo no Salão Ruy Barbosa.

Conheci o acervo no segundo semestre de 2000, poucos meses após minha defesa de tese na FFLCH/USP, quando desejei premiar o pesquisador com o desafio de levantar a vida e a obra do gráfico e editor baiano Cincinnato José Melchiades (1858-1920). As mais diversas circunstâncias mais esmoreceram do que encorajaram o intento, de modo que, apenas 17 anos depois, reuni o material obtido sobre o ativo personagem e publiquei Anotações sobre Cincinnato José Melchiades e a sua Typographia Bahiana (Salvador: e.a., 2017).

Foi na biblioteca da Associação dos Empregados no Comércio onde encontrei muitos títulos publicados por Cincinnato na sua Typographia Bahiana. Por causa desse levantamento, retirei das estantes fileiras e fileiras de livros e pude, então, constatar que o acervo cobria o período do início do século XIX até meado do século XX. Poderia afirmar que o tema preponderante no acervo é o Brasil, ainda que muitas das publicações do século XIX tivessem origem estrangeira: portuguesa, francesa, italiana e até norte-americana. No que se refere ao século XX, ressalto, sobretudo, as publicações do período do Estado Novo.

Destaco, do século XIX, para assim provocar o apetite das colegas bibliotecárias os três volumes O guarda livros moderno (ou curso completo de instruções elementares sobre as operações do comércio, tanto de mercadorias, como em banco), de Manoel Teixeira Cabral de Mendonça, publicados pela Impressão Régia, de Lisboa, entre 1818 e 1835. Acrescento e arrisco apontar estes dois livros como raridades do século XIX: O livro indispensável á Guarda Nacional, de Manoel Joaquim de Bulhões Dias, publicado em 1859, no Rio de Janeiro, pela Eduardo & Henrique Laemmert, e Consolidação das disposições em vigor relativas á Guarda Nacional ou Milicia Civica, do coronel Josino do Nascimento Ferreira e Silva, publicado em 1894, no Rio de Janeiro, pela Typographia d’O Paiz. Desconheço a existência de edição de ambos no século XX e isso, ao tempo que os torna inacessíveis e valiosos, empobrece a bibliografia de que se poderia servir até estudiosos de patentados como o Major Cosme de Farias.

Chamou-me a atenção, quando examinei o acervo de impressos do Salão Ruy Barbosa da Associação dos Empregados no Comércio do Estado da Bahia, dos livros sobre a flora e a flora brasileira, alguns de tamanho avantajado, dos quais destaco uma publicação do século XIX e três, do início do século XX: a 12ª edição de Le Brésil, de E. Levasseur & alli, publicada em 1889 pela H. Lamiraut et Cº, Editeurs; The new Brazil, de Marie Robinson Wright, publicada na Filadélfia, em 1901, pela George Basrrie & Son; os dois volumes do Sertum palmarum brasiliensium, de J. Barbosa Rodrigues, publicados em Bruxelas, em 1903, pela Typographie Verve Monnom; e Impressões do Brazil no século vinte, de Arnold Wright & alli, publicado em Londres, em 1913, pela Lloyd’s Greater Britain Publishing Company, Ltd.

Em 2000, encaminhei correspondência para o então presidente da Fundação Gregório de Mattos, arquiteto e professor Francisco Sena, pedindo providências. Escrevi, num dos trechos:

“Ouso sugerir que a Fundação Gregório de Mattos, sozinha ou com parceiros, proponha à Associação dos Empregados no Comércio do Estado da Bahia a permuta dos livros anteriores a 1950 por livros mais recentes, de uso mais constante. Ou que a Fundação mantenha ali, naquelas belas estantes, os livros que puder salvar, e que assegure pessoal e equipamentos para que eles não voltem a sofrer. O bom senso de quem vier a administrar o espaço permitirá a manutenção do acervo, evitando o manuseio indiscriminado e até mesmo os atos gratuitos de vandalismo. O valor dos livros de que trato nesta correspondência é tanto maior porque eles encerram o testemunho de nossa própria história. A história dos impressos da Bahia. V.Sª talvez não saiba que inexiste inventário dos livros que foram impressos na Bahia desde 1811, ano em que o português Manoel Antonio da Silva Serva fundou a primeira tipografia em Salvador. Esse inventário deveria ser permanente. Esse vazio impossibilita, por exemplo, sequer levantar a produção editorial baiana dos últimos anos, de editoras ou mesmo do Governo do Estado.”

A resposta à correspondência jamais chegou em minhas mãos, se é que houve alguma resposta. Tampouco obtive retorno ao pedido de ajuda para salvar a biblioteca que encaminhei a ilustres pessoas do Brasil e do exterior. A propósito, anexei, nas cartas que fiz ao bibliófilo José Mindlin (1914-2010) e ao jornalista Jorge Calmon (1915-2006), cópia da correspondência que encaminhara ao presidente da FGM. Registro, mais uma vez, que o professor doutor Luis Henrique Dias Tavares, que é meu pai, era, na época, vice-presidente do Conselho de Cultura do Estado da Bahia e, sensibilizado, encaminhou indicação ao secretário Paulo Gaudenzi para as providências necessárias. O secretário despachou para a Biblioteca do Estado a solicitação e a resposta dos técnicos da instituição não contemplaram nosso apelo. Muito pelo contrário!

Enfim, isso, quiçá, já é página virada.

Vamos então resenhar o novo livro de Dom Marcus de Noronha da Costa, A Livraria de D. Marcos de Noronha e Brito, 8º Conde dos Arcos, último vice-rei do Brasil (Lisboa: e.a., 2018). O faço porque seu conteúdo é contraponto radical ao que acabei de apresentar sobre a biblioteca da Associação dos Empregados do Comércio do Estado da Bahia. Se dessa não sabemos que destino foi dado aos mais de 10 mil volumes, a do 8º Conde dos Arcos, inventariada pelo descendente e autor do livro citado, permanece, no Palácio do Salvador, nos altos do bairro de Alfama, em Lisboa, com os mais de 300 volumes que a compõe desde do final do século XVIII. Registre-se que esses livros atravessaram o Oceano, ida e volta, e ocuparam, entre 1803 e 1821, estantes em Belém do Pará, em Salvador e no Rio de Janeiro (em duas ocasiões).

O autor do livro em apreço examina na obra 324 publicações do acervo do 8º Conde dos Arcos que vieram a lume entre os séculos XVI e XIX. Predominam os livros sobre Portugal, Eclesiástica, Genealogia, Brasil e Temas castrenses e afins. A análise é respaldada com 491 notas de rodapé. As 160 páginas estampam a relação das obras literárias do autor, a Nota Justificativa, seguidas de três capítulos que tratam da vida do 8º Conde dos Arcos e da relação dele com os livros da sua biblioteca. O 4º e último capítulo, o único deles com título próprio – “Livros q. vão pª o Pará do Captam General D. Marcos de Noronha e Brito, Conde dos Arcos” –, relaciona os autores e os títulos dos impressos e agrega cerca de 300 notas de rodapé.

O autor de A Livraria de D. Marcos de Noronha e Brito, Dom Marcus de Noronha da Costa, seria Conde de Subserra se a Monarquia prosperasse em Portugal; o país tornou-se República em 05 de outubro de 1910. Esse seu livro reúne estudos a respeito que o autor publica desde a década de 1970. Há, portanto, 50 anos, pelo menos, ele estuda o tema e seu livro, por seu esforço pessoal de enaltecer o acervo a si legado, é elogio ao livro, esse bem maior que a humanidade cultiva há milênios.

Este volume me foi ofertado pelo autor e leva o número 480. À guisa de autógrafo, Dom Marcus de Noronha da Costa escreveu na folha de rosto: “Pertence este exemplar ao Prof. Luis Guilherme Pontes Tavares. Ofce (abreviatura de oferece) Marcus de Noronha da Costa (Subserra). Lisboa, 17 de março de 2019”. Os originais foram registrados, em 2017, na Biblioteca Nacional de Lisboa sob o número 435762 e o registro no ISBN é 978-989-20-8147-2.
Se fiquei lisonjeado com a distinção do amigo português, que conheci em 2008, na Associação Comercial da Bahia (ACB), quando participei do seminário “O 8º Conde dos Arcos: seu percurso e circunstâncias no Brasil”, imagino como ficaria o saudoso professor doutor Edivaldo Machado Boaventura (1933-2018), a quem o autor distinguiu com um dos 20 exemplares da edição especial numerada e impressa “em papel Coral Book de 90 g/m2 creme”!

Convém ressaltar que, ao contrário do que se deu com a biblioteca do 8º Conde dos Arcos, que resistiu ao tempo, intempéries e perigos variados, a biblioteca da Associação dos Empregados do Comércio do Estado da Bahia não foi objeto de estudo algum e sobre ela o que há, até prova em contrário, é o registro que lhes faço.

Muito obrigado pela atenção!

(Este texto foi lido durante a intervenção de Luís Guilherme Pontes Tavares na Flipelô, no dia 10 de agosto).

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* Jornalista, produtor editorial e professor universitário. É diretor da ABI.< [email protected]>

Nossas colunas contam com diferentes autores e colaboradores. As opiniões expostas nos textos não necessariamente refletem o posicionamento da Associação Bahiana de Imprensa (ABI).

 

 

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