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Jonas Pinheiro, editor da Revista Afirmativa, fala sobre os desafios de produzir mídia negra

Quase duzentos anos se passaram desde o surgimento oficial da imprensa negra no Brasil, mas as tintas de “Homem de Cor” continuam inspirando produções voltadas para as temáticas raciais e sociais. Conheça a história da Afirmativa, publicação baiana engajada no enfrentamento ao racismo.

Quase duzentos anos se passaram desde o surgimento oficial da imprensa negra no Brasil, mas as tintas de “Homem de Cor” continuam inspirando produções voltadas para as temáticas raciais e sociais que atuam no enfrentamento diário ao racismo estrutural no país. Um desses projetos é a Revista Afirmativa, fundada em 2014 por estudantes do curso de Comunicação da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), em Cachoeira (BA). Editor e repórter da publicação, Jonas Pinheiro revela que as inquietações sobre o jornalismo e as pautas da mídia tradicional são temas frequentes nos corredores do Centro de Artes Humanidades e Letras (CAHL). Nesta entrevista à Associação Bahiana de Imprensa (ABI), ele contou um pouco da história da Afirmativa e falou sobre os desafios de produzir uma comunicação focada no marcador racial e sócio-cultural. O pesquisador da mídia negra também refletiu sobre as últimas movimentações ocorridas no mundo em torno da violência policial e as manifestações digitais contra o racismo. Para ele, antirracismo não é uma condição dada nem definidora. “Temos séculos de desigualdades. É preciso mais do que hashtags e fotos pretas nas redes sociais”, argumenta o mestre em Comunicação. Confira abaixo a conversa!

No site, a Revista Afirmativa é descrita como uma publicação que “atua pela garantia da representatividade das pessoas negras na mídia, de maneira real, diversa, humanizada, útil e qualificada”. Como você/s definiriam um jornalismo humanizado?

Jonas Pinheiro: Jornalismo humanizado deveria ser uma redundância. O papel da área deveria ser auxiliar a população em suas demandas diversas e o jornalismo deveria funcionar como uma prestação de serviço à esfera publica. Infelizmente, esse papel é negligenciado, ou até mesmo ignorado e violado por algumas empresas de comunicação. Não precisa ir longe para perceber isso, basta ligar nos programas policialescos do horário do meio-dia.Desta forma, nós da Afirmativa prezamos por um jornalismo que seja aliado da população (sobretudo a negra) e defensor dos direitos humanos como cerne. Por vezes nos confundimos com a fonte e o leitor, afinal, “somos nós, falando de nós, para todo mundo”. Na nossa prática jornalística, não estamos distantes das pessoas de quem falamos e com quem falamos. Fazemos isso prezando sempre pela ética e pelo profissionalismo.

Podemos observar através do site que sete mulheres e um homem compõem a equipe. Como foi pensada a composição?

J.P.: A equipe da Afirmativa passou por várias reformulações ao longo do tempo. Atualmente contamos com 7 pessoas, entre jornalistas, social medias e outros. A redação (jornalistas) conta com 5 pessoas.O gênero nunca foi um fator necessariamente pensado (inclusive o site está em reforma, mas, de fato, hoje sou o único homem da equipe), de forma que outros homens passaram pela revista ao longo das edições.Evidentemente,essa intensificação do movimento de emergência de mulheres negras, que tem pautado não só a comunicação como outros espaços de militância e de disputas de poder, tem influência na composição e na própria identidade da revista. Mas isto foi algo bem espontâneo e natural.

⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀Atual equipe da Revista Afirmativa

Qual é a história do veículo?

J.P.: A Afirmativa surgiu em 2014, em Cachoeira (BA), no Centro de Artes Humanidades e Letras da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), apesar de ter sido pensada desde 2013. Alane Reis era estudante de comunicação e convidou colegas do curso para fazer uma publicação que dialogasse com os estudantes da universidade, em sua maioria negra, e que desconheciam em grande medida o histórico das cotas raciais e políticas afirmativas. No primeiro momento, o objetivo era circular dentro da universidade e contar o histórico das políticas afirmativas. A primeira edição foi tão bem recebida que o projeto cresceu e deixou de ser uma espécie de jornal laboratório. Na segunda edição, quando começo a fazer parte, a revista “rompe os muros da universidade”, passando a falar de outros temas, como racismo religioso, revista vexatória, racismo no esporte dentre outros.Desde então, o veículo funciona na internet e em edições impressas com o objetivo de ser uma mídia negra e popular. [Para mais detalhes sobre o processo de formação do veículo, consulte o último capítulo da dissertação de Jonas: Alma_Preta_e_Afirmativa: experiências contemporâneas de mídias negras na luta contra o racismo]

Em 2014, foram lançados o portal e a primeira edição impressa da Revista. Após 3 edições impressas, em2018, foi descontinuado o formato impresso da publicação. Por quê?

J.P.: A Afirmativa, como explicado na história, surge dentro da UFRB como um produto de estudantes de comunicação. As impressões da primeira e da segunda edição foram financiadas pela PROPAE – Pró-Reitoria de Políticas Afirmativas e Assuntos Estudantis da Universidade.Depois disso, os estudantes se formaram e perderam vínculo oficial com a instituição. Passamos a procurar formas de manter o projeto vivo e torná-lo rentável, inclusive para pagar os jornalistas que desde sempre trabalharam de forma colaborativa. Portanto, boa parte da vida da Afirmativa foi um trabalho de militância e de luta para sobreviver, diante de um cenário em que fazer comunicação negra impõem uma série de desafios e dificuldades.Voltando os olhos para o histórico da imprensa negra brasileira, vamos perceber que isso é uma tônica deste seguimento. As dificuldades financeiras sempre permearam estes veículos, que na maioria das vezes, devido a este fato, tinham suas vidas encurtadas. Após as duas primeiras edições, a luta dos jornalistas da Afirmativa foi para manter o projeto vivo, que ficou apenas funcionando na internet (no portal e nas redes sociais) entre 2015 e 2018, quando tivemos um projeto selecionado pelo Fundo Brasil de Direitos Humanos e que deu origem à terceira edição impressa.Neste período, a revista foi contemplada com um Prêmio de Mídia Livre do Ministério da Cultura, porém, o valor nunca foi pago devido ao golpe de 2016. Todo este cenário de dificuldades financeiras impediu e ainda impede que a revista impressa tenha uma periodicidade, já que a impressão demanda custos.

Do lançamento para cá, foram muitos desafios para a produção? Qual o maior deles?

J.P.: Há o fato de os jornalistas não terem na revista sua principal fonte de renda e trabalhar na maior parte do tempo de forma colaborativa. Eu e as demais jornalistas e comunicadoras da equipe temos outros trabalhos e atividades, de forma que acaba sendo difícil conciliar com as demandas da revista. Isso impede inclusive que tenhamos uma maior produção continuada e periódica.

Vocês acreditam que a imprensa tradicional conseguiria traçar, no mínimo, um modelo de abordagem jornalística antirracista? 

J.P.: Tem se discutido bastante, sobretudo com os últimos acontecimentos, o antirracismo. Ao mesmo tempo em que o debate é importante, ele gera uma série de armadilhas, já que o antirracismo não é uma condição dada. Ele é processual, e não é definidor de veículos ou pessoas.O que temos de histórico da imprensa tradicional é que ela esteve bem longe desse processo que chamamos hoje de antirracismo, muito pelo contrário, na maioria das vezes esteve ao lado do racismo, diretamente ou por omissão. E não precisa cavar muito para perceber isso, basta olhar para as redações da maioria dos veículos da imprensa tradicional, uma sub-representatividade que não será resolvida com “Maju” [Maria Júlia Coutinho] no Jornal Hoje (apesar de ser uma vitória ter uma âncora negra num telejornal de grande alcance), nem tão pouco num programa com seus poucos jornalistas negros após uma série de críticas (como aconteceu naquele especial da Globo News). Apesar disso, a gente torce para que essa onda “importada” dos EUA não fique apenas no discurso, e que os veículos tradicionais de fato repensem suas abordagem e práticas racistas, a começar pelo número de jornalistas negros contratados.

Qual a importância de uma imprensa negra na Bahia e no Brasil? Vocês têm alguma referência histórica de outros veículos?

J.P.: Toda (risos). Desde os manuscritos sediciosos de 1798 na Revolta dos Búzios, onde pessoas negras pediam o fim da escravização e é considerada uma experiência embrionária da imprensa negra, à Afirmativa, ao Correio Nagô, Alma Preta e tantos outros veículos contemporâneos, a mídia e imprensa negra brasileira estiveram comprometidas na luta contra o racismo em seus diversos aspectos e âmbitos.Pessoas negras há muito tempo se utilizam da comunicação para lutar contra esse sistema de opressão que estrutura a sociedade brasileira. Aqui na Bahia e em todo o país. Mesmo quando a escravização ainda imperava no país, temos registro de pasquins negros. Oficialmente o “Homem de Côr”, de 1833 no Rio de Janeiro, editado por Francisco Paula de Brito, é o primeiro jornal da imprensa negra brasileira. Desde então várias outras produções negras estiveram comprometidas nesta luta e reivindicando melhores condições para os nossos.Toda esta história é referência para o que a Afirmativa faz hoje, nosso compromisso é continuar a luta dos nossos ancestrais. Como nossos mais antigos costumam sempre nos lembrar, “nossos passos vêm de longe”.

Como a Afirmativa vê as últimas movimentações ocorridas no mundo em torno da violência policial? E qual o seu posicionamento diante de tantas manifestações digitais em prol do antirracismo?

J.P.: Acabei até falando um pouco disso na outra pergunta. A pauta de violência policial sempre foi uma tônica na Afirmativa. Se olharmos o antigo portal, as edições impressas e toda nossa produção, sempre encaramos este debate como urgente. Os diversos dados e as vivências das populações negras e periféricas demonstram isso.Me parece muito emblemático que precisou que houvesse um assassinato de um homem negro nos Estados Unidos para que aqui no Brasil, onde isso acontece a cada 23 minutos – e algumas diversas vezes pela mão da polícia -, esta pauta ganhasse protagonismo.

De qualquer forma, é importante e positivo que este debate ganhe mais visibilidade, sem perder a dimensão que a mídia negra, e em determinado nível a alternativa, sempre denunciaram a brutal violência policial à qual os corpos negros estão sujeitos neste país, que promove escancaradamente um genocídio da juventude negra.Torço para que este movimento, e estes movimentos de protesto inclusive, não estejam tomando corpo apenas no “calor do momento” e não seja meramente mais uma importação dos EUA, e que reflitamos e cobremos medidas efetivas para frear o que acontece em nosso país há muito tempo.Como disse anteriormente, o antirracismo não é uma condição dada nem definidora, temos séculos de desigualdades, e sem adentrar as entranhas das estruturas do país o termo vira apenas uma expressão. É preciso mais do que hashtags e fotos pretas nas redes sociais para que isso aconteça. As soluções perpassam por uma mudança de atitude de toda a sociedade, sobretudo a branquitude que é quem detém a maioria dos espaços de poder e carrega privilégios estruturais.

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