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Foia dos Roçêro: Livro registra história de jornal humorístico na Bahia do século XIX

Semanário revela contexto sociopolítico-econômico e características da imprensa da época. Quase todos os exemplares consultados pela autora foram encontrados na Biblioteca de Comunicação Jorge Calmon, da Associação Bahiana de Imprensa (ABI), principal fonte de pesquisa da publicação.

"Viva a Foia dos Roçêro
Pur o anno de existença!
É bixinha corajuda,
De talento e independença!
Este jorná piquininho
Tem a grande quolidade
De pricigui os gatuno
Que véve n’arta suciadade! 
[...]
Fais um anno que cumbate
Sem médo e cum valentia 
Contra o ratão comedou
Que disgraçou a Bahia!

Esta Foia arrepresenta
O grande povo miúdo,
Que ta gemendo e pagando
Ladroeira dos graùdo!"(Versos do editor Coroné Zé Perêra Capa-Bode, no primeiro aniversário do jornal)

“A trogafia é cuma se purnuncia”, avisou a jornalista Neuma Dantas nesta quarta (17), durante o lançamento do seu livro “Foia dos Roçêro: Crítica política e humor na imprensa baiana do século XIX”, na Faculdade de Comunicação da UFBA – Universidade Federal da Bahia. Em uma importante iniciativa pela preservação da memória da imprensa no estado, a pesquisadora realizou um verdadeiro trabalho de tradução, para resgatar a história do jornal satírico que usava a linguagem caipira, pseudônimos e ilustrações como armas de crítica política e meios de burlar a censura velada da época. A quase totalidade dos 92 exemplares consultados pela autora foi encontrada na Biblioteca de Comunicação Jorge Calmon, da Associação Bahiana de Imprensa (ABI), principal fonte de pesquisa para a produção do livro publicado pela Editora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (EDUFRB).

Neuma Dantas, jornalista e mestre em Comunicação – Foto: ABI

Neuma Dantas lembra que a imprensa de narrativa irreverente foi bastante praticada na virada dos séculos XIX/XX. Circulava em Salvador, conforme o jornalista Gutemberg Cruz (1997), por exemplo, O Pereira (julho de 1831), sendo que a Bahia chegou a contabilizar mais de 50 títulos de jornais humorísticos entre os anos de 1800/1900, como O Satanaz, A Troça, O Neto do Diabo, além da Foia dos Roçêro (escrito pelo redator sob o pseudônimo “Coroné Zé Perêra Capa-Bode” e publicado pela primeira vez em agosto de 1899, em Salvador). “Apesar das publicações, não há estudos sobre essa produção. O livro atende a um clamor e uma necessidade muito grande de se valorizar a história da imprensa da Bahia”, enfatiza a integrante do Grupo de Estudos de Comunicação, Política e Redes Digitais (CP-Redes), coordenado pelo professor Othon Jambeiro, no Pós-Com/UFBA.

Capa do livro “Foia dos Roçêro”, de Neuma Dantas – Foto: Reprodução

Com seus desenhos irreverentes e narrativa humorística, a Foia dos Roçêro criticava os modos políticos e socioeconômicos, zombando dos poderosos como meio de apresentar a notícia silenciada. Para a mestre em Comunicação, “a obra transformou-se numa testemunha sócio-histórica e um documento jornalístico que atesta uma fase da imprensa baiana e brasileira”, observa Dantas. “O jornal quis driblar impedimentos à liberdade de expressão para falar ao público da Cidade da Bahia. Seus maiores recursos estratégicos eram o humor/ironia, a linguagem caipira, o uso de pseudônimos e ilustrações. Como a imprensa tinha forte ligação com a política, os redatores que escolhiam fazer oposição sofriam muitas represálias”, contou.

De acordo com Neuma, a Foia dos Roçêro descreve todo o contexto sociopolítico da virada do século, marcadamente ruralista. “É um documento da imprensa alternativa brasileira, um documento que atesta uma mudança política no país: da monarquia para a república (nova Constituinte); do trabalho escravo para o trabalho assalariado (novos meios de produção). Para completar o ambiente, havia censura velada, fraudes eleitorais e violência”, destacou a autora sobre o caráter de denúncia, ligeiramente camuflado nas páginas de textos jocosos. “A imprensa rebelde se insurgia contra o sufocamento da liberdade de expressão. O riso como arma de poder e contra o poder, possivelmente, foi usado como estratégia para burlar a censura”, afirmou.

Acervo da ABI

A pesquisadora destacou a contribuição do acervo da Biblioteca de Comunicação da ABI no processo de produção do livro. “Se não fosse o arquivo da ABI, eu não estaria aqui hoje, lançando este livro. Ele não estaria na estante”, afirmou Dantas, que além de ser jornalista tem formação em Letras Vernáculas (UFBA). “A ABI é uma instituição que deve ter vida para sempre e deve ser preservada e incentivada em seu trabalho de arquivo. É uma associação importantíssima para o nosso estado”. Ela falou da importância do professor e historiador Luiz Henrique Dias Tavares e enalteceu o trabalho da ex-museóloga da ABI, a artista plástica Lygia Sampaio, pela dedicação ao acervo da instituição.

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Neuma Dantas criticou a falta de preservação e condição indigente da maioria dos jornais nos arquivos baianos. “Temos um problema sério. Eu peguei pedaços do jornal nas mãos, na Biblioteca Pública do Estado da Bahia. O que seria de nós, pesquisadores, se não existissem arquivos conservados?”, questionou. “Meu agradecimento todo especial à ABI, em especial aos sensíveis professores Sérgio Mattos e Luís Guilherme Pontes Tavares, que são batalhadores nessa luta de valorização da imprensa baiana. O editor, Sérgio Mattos, acreditou na proposta no livro, que é justamente de tirar dos escombros do esquecimento um jornal baiano de ricas peculiaridades”, comemorou.

Luís Guilherme Pontes Tavares, diretor da ABI e orientador de Neuma Dantas – Foto: ABI

O diretor da ABI, Luís Guilherme Pontes Tavares, foi o orientador de Neuma Dantas na graduação. Partiu dele a ideia de resgatar a Foia dos Roçêro. O pesquisador reconheceu a relevância da obra e sugeriu a produção de uma edição fac-similar. “Um trabalho inspirador, seminal. Este livro é uma prova da contribuição e cuidado que a ABI tem com a documentação baiana sobre a história da imprensa, particularmente, com as coleções de jornais do século XIX e início do século XX. Não fosse a existência da coleção da nossa biblioteca, não teríamos esse precioso trabalho”, frisou.

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À direita, Sérgio Mattos, diretor da ABI e superintendente da EDUFRB – Foto: ABI

“Esse livro é fruto de um trabalho de conclusão de curso que volta para a universidade dentro de um grupo de pesquisa de pós. Isso mostra que podemos formar bons pesquisadores no período da graduação”, defende o superintendente da editora da UFRB e diretor da ABI, professor Sérgio Mattos. Segundo ele, a editora disponibiliza todos os títulos para download gratuito. “A editora é aberta. Temos menos de cem títulos publicados, mas atingimos uma média de oito livros por ano, o que está dentro da marca das pequenas editoras universitárias. Quando não temos recursos, publicamos em e-book”, garante.

Museu de Imprensa da ABI

No bojo das ações para preservar a memória da imprensa no estado, a Associação Bahiana de Imprensa (ABI) vai reabrir ao público o Museu de Imprensa, no Edifício Ranulpho Oliveira (Praça da Sé). A entidade iniciará ainda esta semana os serviços de adaptação da loja B do andar térreo, para abrigar o equipamento cultural. Em breve, o Museu poderá receber visita de todos aqueles interessados em compartilhar o acervo precioso que conta uma parte da nossa história através da imprensa.

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